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          Rodrigo Moura; Imagine Brazil, catálogo. Astrup Fearnley Museet, Oslo e Musée d'art contemporain de Lyon, 2013-2014.

 

 

 

          Não é obvio o lugar do qual Rodrigo Cass resolveu partir para começar sua pesquisa. O início de sua obra é marcado por experimentações solitárias diante de uma câmera parada, tomando o espaço do quadro do vídeo como uma espécie de  membrana entre a ação realizada e a narrativa absorvida pelo espectador. São situações estranhamente banais, mas que ao mesmo tempo guardam urgência quando vistas pela primeira vez.

          Arma Branca (2011) é extremamente eloquente desta espécie de expansão do limite do quadro – tanto física quanto ética. A câmera enquadra uma mão, que introduz objetos numa sacola de plástico branca pendurada numa parede, numa mise en scène anódina e anônima, contra um fundo que poderia se passar por uma situação publicitário-institucional de um estúdio de baixo orçamento. As facas introduzidas são ao mesmo tempo arma e ferramenta, que com sua qualidade perfuro-cortante e o peso resultado de seu acúmulo irão romper o continente, explicitamente débil, escolhido para recebê-las. O término da ação coincide com o término do vídeo, numa moral da história de causa e efeito um tanto brutal. Reproduzido indefinidamente, na estratégia mântrica do loop, sua repetição pode se tornar diabólica, passado o impacto da primeira visão.

          Numa exposição no Cassino da Pampulha (“Bolsa Pampulha, 2010—2011”, Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte), estes vídeos foram apresentados como pequenas projeções, ocupando espaços não usuais deste prédio museologicamente não usual, passando às vezes desapercebidos e ao mesmo tempo tornando ativos nichos e detalhes da arquitetura, chegando ao ponto de simular ações diretamente sobre a elementos do prédio, como uma infiltração ilusionista sobre uma cortina (Reserva Rápida, 2011). A um exame atento, percebemos que o pano de fundo da obra citada anteriormente é também uma espécie de repetição (reconstrução? manipulação?) do piso de mármore e da parede de madeira laminada usados naquela estranho detalhe arquitetônico que o prédio propicia aparentemente com o exclusivo intuito de permitir que o artista exiba sua obra.

          Outras obras anteriores com estratégias semelhante usam uma espécie de inversão do gênero da natureza morta, em pequenas ações envolvendo objetos igualmente animados pelo artista em movimentos ritmados de acordo com uma lógica obstinada. Em Ferro, Leite e Garrafa (2006), um ferro de passar roupa é colocado sobre uma garrafa plástica cheia de leite e destampada. O calor deforma o objeto e faz o líquido evaporar, enquanto a mão do artista concorre para a ação, acelerando o processo entrópico entre os três elementos – ademais carregados por simbolismos acirrados por suas características, assim como água na cortina e as facas na sacola. Em Acende-se (2011), assiste-se ao contato agonístico entre duas lâmpadas incandescentes seguradas pelo artista, em cada uma das mãos. Nenhuma delas está inteiramente atarrachada, portanto o contato termina por causar a interrupção da luz, num jogo sem lógica aparente mas extremamente aflitivo.

          Em todas estas obras, observa-se o aspecto espartano do cenário e a precisão do enquadramento da câmera fixa, a serviço exclusivamente do conjunto de ações repetitivas encetadas pelo artista com seus objetos de eleição. Há mesmo uma transcendência nestas ações?, parece interrogar-nos o artista, mediante a sua estranha e ao mesmo tempo “desimportante” economia de meios. Uma pista para esta pergunta pode ser encontrada nas obras nas quais o jogo de composição tipo natureza-morta (por falta de melhor definição para nomear estas liturgias-joguetes sobre a mesa ou contra mini-cenários), dão lugar a outras obras nas quais fragmentos do corpo do artista aparecem mais decisivamente, como em Sem título (2009) e Narciso no Mijo (2006), em que o artista usa o mesmo ferro de passar para apagar sua imagem refletida na urina, evocando o mito grego.

          Comparados com seus trabalhos em vídeo, os experimentos de Rodrigo Cass com o espaço pictórico parecem bem mais ligados à tradição da arte brasileira. Podemos ver a presença de artistas como Jorge Macchi, Rivane Neuenschwander, José Damasceno e Cildo Meireles, para nomear alguns. O que será que faz, então, o interesse destas obras. Uma exposição recente no Centro Cultural São Paulo (2013) parece ter a resposta para esta pergunta. Instaladas em conjunto (e não lidas individualmente) estas obras colocam o próprio ser do quadro em questão. O interesse de Cass pela geometria, e especificamente pelo espaço hipercodificado da grade e da página pautada, é de certa forma um motivo e um pretexto para esta pretensão ontológica que suas obras aspiram. Ao percorrer as paredes da exposição, encontramos uma verdadeira via crucis do quadro: ele aparece apoiado sobre uma delicada prateleira, deformado pela força da gravidade; inserido dentro de chassis convencional coberto com linho; fragmentado em pedacinhos, libertos de uma alegórica espiral e colados pela força de um desejo impossível de unidade; encarcerado numa caixa de acrílilco, qual falsa relíquia a ponto de transbordar seus limites; como pintura-pintura, num par delas em que a relação entre motivo e espaço é conflitiva por escolha. Os materiais elegidos, dos quais o cimento moldado como corpo e superfície e aplicado como imprimatura e tinta é o mais importante, e a inserção aparentemente gratuita da cor (que uma leitura apressada poderia tachar como decorativa) são os outros elementos de uma almejada desconstrução do corpus pictórico.

          Cass não é apenas mais uma voz no panorama às vezes leviano e hiperacelerado dos artistas emergentes brasileiros. Seus pontos de partida, seja para a obra em vídeo, mais desenvolvida, seja para seus incipientes porém sinceros experimentos pictóricos, nada têm de fáceis ou de confortáveis e sua concentração e têmpera artística serena parecem em compasso com o tamanho de sua ambição. Quando penso no cerne do seu trabalho – à medida que ele se torna, lentamente, mais evidente para mim – a imagem de João Gilberto tentando inventar a batida da bossa nova num refúgio no Norte de Minas Gerais aparece quase concreta. Para um domingo à tarde, isso pode ser muita coisa. Para uma vida inteira nas artes, apenas um começo.

 

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